Com estreia prevista para 2025, obra é inspirada na história em quadrinhos Humor Azul: o lado engraçado do autismo
Uma adaptação do livro Humor Azul: o lado engraçado do autismo, do cartunista Rodrigo Tramonte, está sendo produzida para o audiovisual. Em formato documentário de média-metragem, a obra entrevistou doze pessoas que foram tardiamente diagnosticadas dentro do espectro autista, contando suas histórias de forma leve e divertida. Luiza Guerreiro, produtora executiva do filme, contou com exclusividade detalhes da obra que está em fase de pós-produção, e tem previsão de lançamento para o primeiro semestre de 2025. “A gente tentou focar nesse grupo de pessoas que passou a vida meio que sem saber esse diagnóstico, sem entender a sua condição e como foi para elas esses momentos de vida pré-diagnóstico, durante e pós. A nossa tentativa no documentário foi trazer vários pontos de vista, várias falas”, revelou a produtora.
A história em quadrinhos que inspirou o documentário, segundo Luiza, destaca que os autistas são pessoas com gostos, estilos e características diferentes, mas que têm algo em comum: estar dentro do espectro. O que não significa que necessariamente todas elas vão pensar de forma igual. “A gente quis desmistificar um pouco como eles são retratados na mídia. Então, vários dos nossos entrevistados trouxeram histórias um pouco mais engraçadas. A gente nem chega a dizer que elas são engraçadas no sentido cômico, mas talvez mais trágico-cômico. Um pouco sobre esse ponto de vista diferente que eles têm da vida e das coisas que aconteceram com eles”, contou Luiza.
O cartunista Rodrigo, que recebeu o diagnóstico de TEA com mais de 30 anos, sempre teve hiperfoco em tv e cinema. Testemunhar, agora, o processo de adaptação de suas criações para a linguagem audiovisual está sendo uma experiência gratificante. “Por coincidência, quando crio minhas histórias em quadrinhos, já crio elas imaginando a adaptação para as mídias audiovisuais, inclusive com as vozes de dubladores famosos interpretando as falas dos personagens”, observou o artista.
A produção do filme é independente, feita pela produtora Plot Kids em associação com a Tramonteiro, através de recursos da Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, e agora está em pós-produção e em fase de pesquisa de circuitos de exibição para o projeto. Os idealizadores trabalham desde 2016 para tirar a ideia do papel. “A gente está muito feliz de como o filme tomou corpo e com os nossos personagens. A gente tem homens, mulheres, pessoas de idades diferentes. Todos são adultos, mas a gente conseguiu ter diferentes faixas etárias dentro do adulto e suas vidas distintas”. Luiza fez questão de convidar pessoas dentro do espectro para integrar a equipe técnica e criativa do filme. “A nossa diretora de produção é autista e a gente também conta com artistas que vão ajudar a fazer a parte gráfica, que também estão dentro do espectro. Para a gente, era bem importante não ter só do outro lado da câmera, mas dentro da equipe também”. Além disso, Luiza cuidou de criar abordagens inclusivas nos bastidores da produção, como um treinamento para a equipe sobre linguagem não capacitista, para evitar termos equivocados dentro do set, e o acompanhamento psicológico e psiquiátrico, caso fosse necessário algum auxílio. “Principalmente porque é uma situação de estresse, né? Pra qualquer pessoa que está ali se despindo num documentário, se mostrando na câmera”.
Por que falar sobre diagnóstico tardio?
Uma questão da vida pessoal de Luiza foi um dos motivadores para realizar o filme. Sua mãe manteve por muitos anos uma escola de equoterapia, onde trabalhava com crianças, principalmente, dentro do espectro. A menina cresceu, então, convivendo com essa paisagem e nutriu o desejo de colaborar para a conscientização sobre o assunto. Mas foi o encontro com Andrea Monteiro, criadora da ONG Autonomia, o pontapé certeiro para o desejo ganhar forma. A organização tem sede em Florianópolis, cidade onde Luiza reside, e acolhe indivíduos e famílias de pessoas com TEA ou necessidades especiais, com foco em ampliar as oportunidades de socialização, desenvolvimento social, melhora da autoestima e percepção de futuro. Nas conversas entre elas, o posicionamento no mercado de trabalho dos adultos com TEA sempre estava em pauta. Andrea, então, presenteou Luiza com o livro de Rodrigo e, imediatamente, a produtora percebeu nele potencial de adaptação para a linguagem audiovisual. “Então, foi o impacto do livro, de ser um livro que é gostoso de ler, é fácil, é divertido. E uma questão de proximidade minha, ou seja, uma facilidade que eu tinha de me relacionar com essas pessoas. Eu também não sou neurotípica, tenho dislexia, e, recentemente, estou começando a perder minha audição. Então, é um universo onde eu já transitava”, acrescentou.
Essa motivação sustenta Luiza até hoje. Cada etapa do filme está sendo realizada com atenção e respeitando o tempo necessário para o trabalho ser feito com rigor. Uma das etapas que ela considera mais importante foi a parte da pesquisa, na qual a equipe se debruçou por cerca de um ano e sete meses. “Conhecer as pessoas, sem dúvida, é a melhor parte”, declarou. As gravações aconteceram este ano em Florianópolis e Curitiba e foram necessários 12 dias para realizar as entrevistas.
O autor do livro também é um dos entrevistados no filme. Rodrigo afirma que a maior parte do material existente sobre TEA mostra o ponto de vista de médicos, pedagogos e cientistas. Humor Azul se destaca justamente por revelar a visão de quem convive com o autismo “no lado de dentro”. “Os autistas estão deixando de ser apenas o objeto de estudo e se tornando também os criadores de conteúdo, o que serve para esclarecer várias informações equivocadas divulgadas amplamente sobre o tema”, comemorou.



Desafios do diagnóstico
Jacson Marçal, 34 anos, foi outro entrevistado que recebeu o diagnóstico há quase 10 anos. Para ele, são muitos os desafios de quem recebe o diagnóstico tardio. “Muitas pessoas têm uma ideia pré-concebida do que é o autismo, baseada geralmente em estereótipos ou em casos diagnosticados na infância. Tive que enfrentar o estigma e as expectativas erradas de amigos, familiares e até de profissionais. Mas cada barreira que eu superava era uma vitória não só para mim, mas para a comunidade autista como um todo. Afinal, o autismo não tem idade, e nunca é tarde para entender quem você realmente é”, adverte Jacson, que hoje trabalha – entre outras coisas – como consultor em assuntos que envolvem TEA. Para além dos desafios, Jacson ressalta o senso de pertencimento que chegou junto com o diagnóstico. “Me fez perceber que não estou sozinho, que há uma comunidade inteira lá fora que compartilha desafios semelhantes. E mais importante, me fez perceber que ser autista não é uma “condição”: é uma parte de quem eu sou, uma parte que eu posso abraçar e celebrar”.
Essa é uma sensação compartilhada por Rodrigo. “A palavra que melhor descreve o momento da descoberta do próprio diagnóstico e que costuma ser usada com unanimidade nos depoimentos de pessoas diagnosticadas tardiamente é alívio, pois, com isso, finalmente conseguimos confirmar que aquilo que as pessoas ao nosso redor sempre chamaram de “teimosia”, “frescura”, “loucura”, “esquisitice”, na verdade sempre foi apenas uma condição neurodiversa com uma explicação científica e plausível por trás, e que é comum a muitas outras pessoas além de nós mesmos”, afirmou.
A transformação que o diagnóstico correto proporciona também foi um divisor de águas para Jacson. “A vida sempre foi um quebra-cabeça para mim, um emaranhado de experiências e sensações que nem sempre faziam sentido. Eu sempre me senti um pouco “fora do lugar”, como se estivesse assistindo um filme sem legenda. Mas tudo mudou quando recebi meu diagnóstico de autismo, mesmo que ele tenha vindo mais tarde na vida”, contou sobre o processo de descoberta, que foi acompanhado por diversos profissionais, como psicólogos, psiquiatras e pedagogos.
História em quadrinhos
Na obra original, Rodrigo retrata um pouco da sua trajetória até o diagnóstico de autismo, desenhando situações vividas pelo personagem Zé Azul e sua turma de amigos. “O livro não foi uma ideia 100% minha, na verdade ele foi uma ideia da diretora da ONG Autonomia, Andrea Monteiro, e do atual Secretário de Esporte e Cultura da Prefeitura de Florianópolis, Ed Pereira”, contou Rodrigo. Outras pessoas ainda colaboraram para que a proposta se concretizasse, como Ulisses Souza, gestor de projetos parceiro de Rodrigo, e Maria Alexandra Cortez, autora do texto da orelha do livro, que foi quem sugeriu usar a própria vivência de Rodrigo e o conteúdo das palestras sobre autismo como inspiração para as tiras do livro.
“Na época da criação do Humor Azul, o único personagem de quadrinhos abertamente autista mais famoso na grande mídia era o André, da Turma da Mônica. Porém, ele é uma criança autista com um viés predominantemente institucional, e resolvi criar um personagem autista adulto, com uma personalidade predominantemente humorística, tal qual vários anti-heróis da cultura nerd e geek (Chaves, Chapolin, Pato Donald, Bob Esponja, Garfield). Porém, me lembrei que muitos fãs destas obras desconhecem completamente o tema do autismo, por isso resolvi acrescentar as explicações didáticas sobre o tema na introdução, epílogo e final de algumas tirinhas do livro”, falou o cartunista, com a alegria de quem realiza um sonho.
“Não foi apenas um trabalho. Foi uma experiência que me mudou de muitas maneiras”
Mais que uma frase de impacto, essa é a definição de Jacson sobre como foi participar do filme. Para ele, fez toda a diferença a forma como a produção acolheu sua participação, desde a escolha do hotel, da comida, até a forma de comunicação. “Participar do filme “Humor Azul” foi mais do que um trabalho, foi uma validação. Foi uma oportunidade de compartilhar minha história e, quem sabe, facilitar a jornada de outras pessoas que podem estar passando pela mesma situação. Foi incrível estar em um ambiente onde eu não era apenas aceito, mas compreendido – de ter minha experiência validada por outros que passaram pelo mesmo” detalhou.
Percebemos essa repercussão também nas palavras de Rodrigo. Para ele, a grande maioria dos autistas não produz arte motivados pela fama, nem pelo dinheiro, nem pelo reconhecimento profissional. E sim pela necessidade de dar uma forma concreta àquilo que está no âmbito abstrato. “Tal qual os pacientes da saudosa Dra. Nise da Silveira, nossa relação com a arte costuma ser mais um idioma através do qual conseguimos comunicar aquilo que sempre acaba soando ininteligível quando tentamos nos expressar pela comunicação verbal e não-verbal”.